quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

SONETO 71


Não chores mais por mim depois que eu morrer,
Ao ouvir o sombrio e escuro sino
Anunciando a todos que parti
Deste mundo vil, habitado por vermes ainda mais vis:
Não, se leres este verso, não lembres
Da mão que o escreveu; pois te amo tanto,
Que prefiro ser esquecido de teus doces pensamentos,
Se lembrar de mim te causar algum pranto.
Ah, se (eu digo) leres este verso
Quando eu já estiver misturado à terra,
Não ensaies repetir o meu pobre nome;
Mas deixa o teu amor apodrecer com a minha vida:
A menos que o mundo pondere e perscrute a tua dor,
E despreze a ti, por mim, após minha partida.

SONETO 72


Ó, a menos que o mundo te obrigue a dizer
Que méritos tanto amavas em mim
Após a minha morte, amor, esquece-me,
Pois nada podes provar sobre o meu valor,
A menos que inventes uma grande mentira
Para fazer por mim mais do que eu mesmo,
E atribuir mais elogios depois que eu morrer
Do que a dura verdade poderia me conceder.
Ó, a menos que o teu amor agora seja falso,
Que tu, por amor, mintas para dizer bem de mim,
Meu nome seja enterrado com o meu corpo,
E deixe de viver para não vexar a mim nem a ti;
Pois me envergonho de tudo que faço;
E tu, também, por amar o que não tem valor.

SONETO 76


Por que o meu verso está tão magro,
Sem variação ou rápidas mudanças?
Por que com o tempo não olho para o lado
Buscando novos métodos e estranhos modos?
Por que escrevo da mesma forma, a mesma coisa,
E deixo à parte a invenção,
Que cada palavra se torne minha conhecida,
Mostrando-me de onde vem?
Ó, sabe, amor, que é para ti que escrevo,
E tu e o amor sois ainda os meus assuntos;
Então, o melhor que faço é reescrever as velhas palavras,
Aplicando novamente o que já foi usado;
Como o sol que, a cada dia, é sempre antigo e novo,
Assim é o meu amor, dizendo tudo que se diz.

SONETO 78


Tantas vezes invoco-a como a minha Musa,
E encontro auxílio para o meu verso
Toda vez que uso a minha pena,
E por ti a sua poesia é aspergida.
Teus olhos, que ensinaram os mudos a cantar,
E a pesada ignorância a planar,
Criou plumas para a sábia asa,
E deu, à graça, majestade em dobro.
Mesmo me orgulhando do que compilo,
Cuja influência vem e brota de ti;
Na obra alheia apenas consertas o estilo,
E as artes com o teu dom são abençoadas;
Mas tu és toda a minha arte, e avanças
Tão alto quanto aprendo sobre o que nada sei.

SONETO 79


Ao pedir, para mim, o teu auxílio,
Meu verso recebia, sozinho, toda a tua graça;
Mas agora perco o ritmo das palavras,
E a minha frágil Musa muda de lugar.
Te dou, amor, o teu adorável pretexto
De merecer o suor de uma pena mais valiosa,
Embora de ti o teu poeta invente,
Ele rouba de ti e a ti novamente paga.
Ele te dá a virtude e subtraiu esta palavra
De teus atos; ele te dá a beleza
Ao vê-la em teu rosto; ele não pode
Elogiar-te, senão naquilo que já existe em ti.
Então, não lhe agradeças pelo que ele te diz,
Pois o que ele te deve é o mesmo que lhe pagas.

SONETO 80


Ó, como enfraqueço ao escrever sobre ti,
Sabendo que um espírito melhor usa o teu nome,
E do elogio emprega toda a força
Para fazer-me calar, ao falar de tua fama.
Mas como o teu valor, vasto como o oceano,
Humilde como a vela mais valente,
Meu latido, muito inferior ao dele,
Emerge sobre as tuas correntezas.
Teu menor auxílio me manterá emerso,
Enquanto ele cavalga as tuas silenciosas profundezas;
Ou, náufrago, sou um barco inútil,
Ele, forte, alto e orgulhoso.
Então, se ele sobreviver e eu for dispensado,
Eis o pior: o meu amor selou a minha ruína.

SONETO 87


Adeus! És muito cara para que eu te tenha,
E bem conheces o teu próprio valor:
O privilégio do teu peso te liberta;
Minha devoção por ti é toda determinada.
Como posso ter-te senão por teu favor?
E, diante de tanta riqueza, que fiz por merecê-la?
A causa do presente que me é dado é o meu desejo,
E, assim, meu direito me é subtraído.
Tu mesma marcaste o teu valor sem o saber,
Ou, a mim, a quem o deste por engano;
Pois a tua grande dádiva, de mim arrancada,
Retorna à tua casa, melhor considerada.
Assim, eu tive a ti como um sonho demasiado:
Um rei ao dormir e, ao despertar, um exilado.

SONETO 88


Quando estiveres disposta a me desprezar,
E expor os meus méritos ao escárnio,
Eu, ao teu lado, contra mim lutarei,
E provarei a tua virtude, embora seja teu o perjúrio.
Com as minhas fraquezas bem expostas,
Por ti, posso engendrar uma história
De ocultas falhas, das quais sou acusado,
Que, ao me pôr a perder, te cobrirá de glória.
E eu disso também sairei vencedor,
Pois, dirigindo a ti os meus amáveis pensamentos,
As injúrias que inflijo contra mim,
Ao te dar vantagem, dou-as em dobro a mim.
Assim é meu amor, assim a ti pertenço,
E, por teu direito, suportarei todo o engano.

SONETO 89


Dize-me que me abandonas por um erro meu,
E te explicarei a razão da minha ofensa;
Dize-me que fui fraco, e aquiescerei,
Sem opor defesa alguma aos teus motivos.
Não podes, amor, desgraçar-me assim,
Determinando a forma ante o teu desejo,
Como será a minha desgraça saber a tua vontade.
Reconhecerei a falta, e parecerei estranho,
Ausentar-me-ei do teu lado e, em minha língua,
Não mais viverá o teu doce e amado nome,
A menos que eu erre por ser demais profano,
E, alegre, revele a nossa antiga amizade.
Por ti, contra mim, jurarei lutar,
Pois, a quem odeias, jamais poderei amar.

SONETO 91


A uns, o berço dá a glória, a outros, o talento,
A uns, a riqueza, a outros, a força,
A uns, as vestes, mesmo espaventosas,
A uns, suas águias e cães, a outros, seus cavalos,
E todo humor provê o seu próprio prazer,
Vendo alegria acima de tudo mais;
Mas essas questões de nada me servem;
Supero tudo isso com um único trunfo.
Teu amor é mais que um berço de ouro,
Mais rico que a riqueza, mais caro que roupas,
Mais prazeroso que águias e cavalos;
E, tendo a ti, desdenho todo o humano orgulho –
Apenas triste por um motivo: que possas privar-me
De tudo, tornando-me o mais infeliz.

SONETO 92


Embora simules a tua pior faceta,
O fim de tua vida assegurou o meu;
E não haverá vida além do teu bem-querer
Por este depender apenas do teu amor.
Assim, não preciso temer o maior dos males,
Quando o menor deles puser fim à minha vida.
Vejo que me cabe uma condição ainda melhor
Do que a de depender do teu humor.
Não podes humilhar-me com a tua inconstância,
Pois a minha vida jaz em tua revolta.
Ó, que felicidade encontro,
Feliz por teu amor, feliz por enfim morrer!
Mas, o que é tão puro que não tema a mácula?
Podes ser falsa, mas, mesmo assim, a tudo ignoro.

SONETO 93


Assim vivo, supondo-te verdadeira,
Como um marido traído; assim a face do Amor
Parecerá amorosa, embora, diversa, se altere –
Voltando a mim os olhos e, o coração, à outra parte.
Pois em teus olhos não pode haver ódio,
Assim nisso não percebo a tua mudança.
De muitas formas a história do falso coração
Se escreve em estranhas alterações de humor;
Mas os céus, ao criar-te, decretaram
Que em teu rosto o doce amor sempre vivesse;
Teu olhar não expressaria senão a doçura
Que passasse por tua mente ou teu coração.
Tal a maçã de Eva, aumenta a tua beleza,
Se a tua doce virtude não te responder em vão!

SONETO 96


Alguns dizem ser o teu erro a juventude; outros, a lascívia;
Outros dizem ainda que a juventude e o ânimo dão-te graça.
Tanto a graça quanto os erros são bem ou mal amados;
Transformas faltas em bênçãos como bem te aprazem.
Como no dedo de uma rainha coroada,
A mais simples joia será mais cara,
Assim são os erros que diviso em ti,
Traduzidos como verdade e tidos como autênticos.
Quantas ovelhas pode o astuto lobo enganar,
Se na ovelha pudesse se transformar!
Quanto assombro não irias afastar,
Se usasses o poder concedido pelos teus bens!
Mas, não faças isso; amo-te de tal modo que,
Por seres minha, digo que tudo fazes à perfeição.

SONETO 99


A violeta exibida, assim a reprovei:
“Doce ladra, de onde roubaste o suave perfume,
Senão do alento do meu amor? O orgulho róseo
Que vive nas faces macias de tua compleição,
Tiraste grosseiramente das veias da minha amada”.
O lírio que condenei em tua mão,
E as folhas de orégano soltas em teu cabelo;
As rosas, medrosas, calaram-se com seus espinhos,
Uma, corada de vergonha; outra, lívida de desespero;
A terceira, nem pálida, nem rubra, a ambas roubou,
E para o seu roubo, juntou o teu hálito;
Mas, para o seu furto, orgulhosa de crescer,
Um vingativo câncer consumiu-a até morrer.
Vislumbrei ainda mais flores, mesmo sem as ver,
Senão a doçura e a cor que de ti tomou.

SONETO 100


Musa, onde estás, que há tanto tempo te esqueces
De dizer aquilo que te dá todo o teu poder?
Usaste teu furor em uma canção espúria,
Reduzindo a força para emprestar-lhes a tua luz?
Volta, esquecida Musa, e redime logo
Em doces horas o tempo inutilmente despendido;
Canta para os ouvidos de quem te estima,
E dá, à tua pluma, talento e voz.
Levanta, leve Musa, vê na suave face do meu amor
Se o Tempo a marcou com alguma ruga:
Se há, ri da decadência,
E despreza os despojos do Tempo por toda parte.
Dá a meu amor fama mais rápido do que o Tempo gasta a vida;
Para que, de sua foice, me afastes a encurvada lâmina.

SONETO 101


Ó, negligente Musa, que desculpas me darás
Por faltares com a verdade tingindo-a com a beleza?
Do belo e da verdade depende o meu amor;
E tu, também, para te tornares digna.
Responde, Musa: não me dirás, alegremente,
“A verdade não precisa de tom por ter a sua própria cor,
Nem a verdade, de lápis para desenhá-la;
Mas o bom é o melhor, se jamais for corrompido?” –
Por ele não precisar de elogios, te entorpecerás?
Não desculpes o silêncio; por depender de ti
Para fazê-lo viver além da dourada tumba,
E ser aclamado longamente no porvir.
Assim, cumpre o teu ofício, Musa; ensinar-te-ei como
Fazê-lo parecer profundo então como se parece agora.

SONETO 102


Meu amor se fortalece, embora não pareça mais forte;
Não amo menos, embora não demonstre tanto;
O Amor anunciado, cuja rica estima
A língua de seu dono difunde por toda parte.
Nosso amor era jovem, então, na primavera,
Quando queria saudá-lo com meus amavios;
Como o rouxinol que canta assim que o verão principia,
E interrompe seu trinado à espera de dias mais maduros:
Não que o verão seja menos agradável agora
Do que os seus tristes hinos que silenciam a noite,
Mas a louca música pesa em seus ramos,
E as doçuras perdem o seu delicioso gosto.
Assim, como ela, por vezes, também me calo,
Para não enfastiar-te com o meu canto.

SONETO 105


Não deixes o meu amor ser chamado idolatria,
Nem a minha amada, de meu ídolo,
Pois todos os meus cantos e versos são apenas
Para ela, sempre sobre ela, e muito mais ainda.
Amável é o meu amor, hoje e amanhã,
Sempre constante em maravilhoso espanto;
Portanto, o meu verso, preso à constância,
Ao dizer uma coisa, entrevê outra.
Bela, gentil e verdadeira, é tudo o que digo,
Bela, gentil e verdadeira, dito com tantas palavras;
E, nesta alternância, uso a minha mente,
Três em um que suporta a soberba visão.
Bela, gentil e verdadeira sempre viveram sozinhos,
Pois, até hoje, juntos, jamais existiram em alguém.

SONETO 107


Não os meus medos, nem a alma profética
Do imenso mundo que sonha com o futuro
Pode controlar o meu verdadeiro amor,
Suposto e destinado à desgraça.
A lua mortal tem seu eclipse prolongado,
E os tristes augúrios desdenham os seus presságios;
Incertezas hoje coroam-se seguras,
E a paz proclama os frutos de uma eternidade.
Agora com as gotas deste momento tão balsâmico,
Meu amor parece jovem e a Morte a mim se subjuga,
Como, apesar dela, eu viverei nesta pobre rima,
Enquanto ela insulta as suas turbas tolas e emudecidas;
E tu, nisto, encontrarás o teu monumento,
Quando ruírem os túmulos de bronze dos tiranos.


SONETO 109


Ó, nunca digas que foi falso meu coração,
Embora a ausência assim me fizesse parecer!
Tão leve me desprendo do meu corpo,
Quanto da minha alma, que jaz em teu peito:
Eis o meu lar de Amor: se tenho errado,
Como quem viaja, novamente retorno;
Ainda a tempo, mas sem retomá-lo –
Para dar sustento ao meu engano.
Nunca acredites, mesmo que em minha natureza reinem
Todas as fraquezas que assediam qualquer um,
Cuja honra seria grosseiramente manchada,
Desperdiçando tudo que tens de bom;
A nada neste imenso universo me dedico,
Exceto a ti, minha rosa e, nele, és tudo para mim.

SONETO 110


Ah, é bem verdade, fui a toda parte
E fiz de mim um tolo perante todos,
Gorei meus pensamentos, vendi barato o mais caro,
Renovei velhas ofensas às minhas afeições.
Certo é que encarei a verdade
De soslaio e a estranhei, mas, por tudo que foi dito,
Esses erros deram novo alento ao meu coração,
E as piores tentativas provaram que és o meu amor.
Agora tudo está feito, tenha o que não tiver fim;
Meu apetite nunca mais eu moerei
Para obter novas provas, para testar um velho amigo,
O deus do Amor a quem sirvo.
Então, receba a mim, dando-me o melhor do céu,
Mesmo para o teu mais puro e adorado coração.

SONETO 112


Teu amor e o pesar dão-me a impressão
Estampando o escândalo vulgar em meu cenho;
Que me importa quem me queira bem ou mal,
Senão tu, sobre meu bom ou mau alento?
Tu és todo o meu mundo, e devo esforçar-me
Para saber as más e boas opiniões que tens de mim;
Não há ninguém para mim, nem eu para mais ninguém,
Que meu duro sentido mude para o bem ou para o mal.
Num abismo assim profundo lanço tudo que me importa
Que os outros digam que o meu senso viperino
Pela crítica e o elogio sejam impedidos.
Veja como dispenso com a minha negligência:
Vives tão firme em meu propósito,
Que todos, além de mim, já morreram.

SONETO 114


Deve a minha mente, coroada de ti,
Sorver a praga do rei, este elogio?
Ou devo dizer que o meu olho não mente,
E que o teu amor ensinou-lhe esta alquimia,
De transformar monstros e coisas indigestas
Em querubins semelhantes à tua doce imagem,
Transmutando todo mal em perfeito bem
Tão rápido quanto tudo dele se aproxima?
Ó, eis o primeiro, o elogio a meu ver,
E minha grande mente majestosamente o sorve.
Meus olhos sabem bem o que a língua prova,
E, para o palato, prepara o copo.
Se for veneno, será um pecado menor
Que o meu amor por ele e, assim, eu principio.

SONETO 115


Estas linhas que escrevi antes mentem,
Mesmo as que dizem que eu não poderia amar-te mais;
Embora o meu pensamento não soubesse a razão
Por que meu ardor devesse depois aumentar.
Mas, ao reconhecer o Tempo, cujos milhões de acidentes
Penetram os juramentos e alteram os decretos dos reis,
Tingem a sagrada beleza, turvam as mais claras intenções,
Desviam as mentes fortes para o curso das coisas mutáveis –
Ah, por que, ao temer a tirania do Tempo,
Não deveria eu dizer: “Agora eu te amo mais”,
Quando a certeza vence a incerteza,
Coroando o presente, duvidando de tudo?
O Amor é como um bebê; então, não posso dizê-lo,
E dar plena altura àquilo que ainda está a crescer.

SONETO 116


Não há empecilhos quando mentes
Verdadeiras se afeiçoam; o Amor inexiste
Quando se altera por qualquer motivo,
Ou se curva sob o ímpeto apressado:
Ah, não! É um olho inabalável,
A mirar as tempestades sem se alterar;
É a estrela-guia de todo barco à deriva,
Cujo valor se desconhece, embora alta viva sobre o mar.
O Amor não serve ao Tempo, embora as róseas faces e lábios
Cedam ao arco de sua longa foice;
O Amor não se altera com as suas breves semanas e horas,
Mas sustenta-se firme até o fim dos dias.
Se tudo que eu disse se provar um engano,
Jamais escrevi, nem amou qualquer humano.

SONETO 117


Disto podes me acusar: de que me neguei
A pagar uma vez mais pelos teus abandonos,
Esquecido de atender ao teu amor,
Aonde os laços me prendem a cada dia;
Que tenho estado com as mentes mais impuras,
E cedido ao tempo o teu direito adquirido;
Que icei velas a todos os ventos
Que me roubaram de teus olhos.
Marca todas as minhas vontades e erros,
E, com essas provas, acumula conjecturas,
Impõe-me o teu juízo,
Mas não me ataques com o teu ódio:
Pois o meu apelo revela que tudo fiz para provar
A constância e a virtude do teu amor.

SONETO 118


Para aguçar os nossos apetites,
Urgirmos o palato a provar de tudo;
Para prevenir moléstias desconhecidas,
Adoecemos para afastar as doenças ao nos purificar.
Mesmo assim, prenhe de tua doçura inebriante,
Para amargar os molhos fiz a minha comida,
E, doente de bem-estar, encontrei um tipo de igualdade
Para adoecer quando houvesse necessidade.
Eis a política do Amor, antecipar
Os males que não existem, alimentados pelas falhas,
E trazidos à medicina em condição saudável,
Que, igualada à bondade, seria curada pelo mal.
Mas, então, aprendi, e vejo a verdade na lição:
Os remédios envenenam quem está doente por ti.

SONETO 119


Que poções bebi das lágrimas das Sereias,
Destiladas dos troncos que queimam como o inferno,
Vertendo medos em esperanças e esperanças, em medos,
Sempre perdendo quando eu estava a ponto de vencer?
Que males terríveis cometeu o meu coração,
Enquanto se julgava jamais abençoado!
Como vagaram os meus olhos fora de suas órbitas,
Ao se distraírem nessa louca febre!
Ah, o benefício da dúvida! Agora descubro ser verdade
Que o bem se aperfeiçoa com o mal;
E o Amor arruinado, ao ser reconstruído,
Cresce mais belo, mais forte e maior ainda.
Então, retorno, refeito, ao meu contentamento,
E ganho, por sorte, três vezes mais do que gastei!

SONETO 122


Teus dons, tuas palavras estão em minha mente
Com todas as letras em eterna lembrança,
Que permanecerá acima da escória ociosa,
Além de todos os dias, mesmo na eternidade;
Ou, ao menos, enquanto a mente e o coração
Possam por sua natureza subsistir;
Até que todo o esquecimento liberte a sua parte
De ti, não se perderá o teu registro.
Essa pobre estatística não poderia conter tudo,
Nem preciso de números para medir o teu amor;
Assim fui corajoso por dar-me a eles,
Por confiar nesses elementos que te exaltam.
Manter um objeto para lembrar-me de ti
Seria aceitar que houvesse esquecimento em mim.

SONETO 127


Em tempos remotos, o negro não era belo,
Ou, se fosse, assim não seria chamado;
Mas agora surge o herdeiro da beleza negra,
E o belo está imprecado de bastardia;
Desde que as mãos detêm o poder sobre a natureza,
Embelezando a feiura com o falso rosto da arte,
A doce beleza não tem nome, nem jardim sagrado,
Vive profanada, ou foi desgraçada.
Os olhos de minha senhora são escuros como o corvo;
Tão belos são os seus olhos e a sua tristeza tão comovente,
Que, mesmo sem ser bonita, ainda é bela,
Difamando a criação com falsa estima.
Eles se entristecem com a própria aflição
Ao ouvirem que não há beleza como a dela.

SONETO 128


Toda vez, quando tu, minha música, tocas
O abençoado cravo que emite os sons
Com o movimento de teus dedos, quando, doce,
Tanges as cordas que confundem os meus ouvidos,
Invejo essas teclas, que, ágeis, saltam
Para beijar a suave concavidade de tuas mãos,
Enquanto meus pobres lábios, que deveriam beijá-las,
Permanecem inertes e corados junto ao cravo.
Ao serem acariciados, mudariam de condição
E de posição com as teclas dançarinas,
Sobre as quais teus dedos caminham alegres,
Tornando a madeira morta mais viva do que os lábios.
Como as teclas saltitantes que tocam felizes,
Dá-lhes teus dedos e, teus lábios, a mim.

SONETO 130


Os olhos de minha amada não são como o sol;
Seus lábios são menos rubros que o coral;
Se a neve é branca, seus seios são escuros;
Se os cabelos são de ouro, negros fios cobrem-lhe a cabeça.
Já vi rosas adamascadas, vermelhas e brancas,
Mas jamais vi essas cores em seu rosto;
E alguns perfumes me dão mais prazer
Do que o hálito da minha amada.
Eu a amo quando ela fala, embora eu saiba
Que a música tenha um som mais agradável.
Confesso nunca ter visto uma deusa passar –
Minha senhora, quando caminha, pisa o chão.
Mesmo assim, eu juro, a minha amada é tão rara
Que torna falsa toda e qualquer comparação.

SONETO 131


És tão tirana quanto todas aquelas,
Cuja beleza orgulhosa torna-as tão cruéis;
Pois bem sabes, para o meu pobre coração,
És a joia mais cara e mais preciosa.
Embora digam, ao ver-te,
Que o teu rosto não faça o amor suspirar.
Não ouso dizer que estejam errados,
Embora eu jure apenas para mim;
E, para ter certeza de não ser falso, juro
Mil suspiros, mas pensando em tua face;
Todos sabem que, se trocasses de rosto,
Eu continuaria a julgar-te bela.
Em nada és negra, exceto em teus atos,
Por isso, penso proceder a calúnia.

SONETO 132


Teus olhos, que amo, sentem pena de mim,
Sabendo que o teu coração me atormenta com o desdém,
Vestiram-se de preto, e enlutaram-se, amorosos,
Assistindo à minha dor com compaixão;
E, em verdade, o sol da manhã não se assenta
Sobre as pálidas faces do nascente,
Nem a estrela brilhante que precede a noite
Glorifica tanto o solene poente
Quanto os olhos enlutados te ficam bem.
Ah, deixa que assim pareça ao teu coração
Prantear por mim, pelo luto ornar-te com graça
E, da mesma forma, a tua compaixão.
Então, jurarei que a beleza é negra,
E avesso o rosto que não se assemelhe ao teu.

SONETO 133


Maldito o coração que faz gemer o meu
Pela funda ferida que causa a mim e a meu irmão!
Não bastasse torturar somente a mim,
Ainda escraviza o meu terno amigo?
Arrancaste-me de mim com o teu olhar cruel,
E a meu semelhante desprezaste ainda mais.
Por ele, por mim e por ti fui abandonado –
Um tormento triplo a ser suportado.
Prende o meu coração em teu peito de aço,
Mas o coração do meu amigo liberta o meu;
Quem me guardar, deixa o meu coração guardá-lo;
Não podes ser tão severa ao me aprisionares.
E, mesmo assim, o fazes, porque, sendo teu,
Dou-me a ti, e tudo que tenho em mim.

SONETO 135


Todos têm seu desejo, tu tens o teu,
E Desejo de dar, e Desejo à mancheia;
Mais do que devo, eu ainda a perturbo,
Acrescendo sempre mais ao teu desejo.
Senão, quem deseja de modo largo e prazeroso,
Sem esconder o meu desejo no teu?
O desejo em outros parecerá gracioso,
E em mim não o aceita?
O mar, os rios recolhem as águas da chuva,
E, abundantes, somam-se às suas reservas;
E tu, rica em Desejo, aumenta o teu Desejo
Com o meu, para fazer crescer ainda mais o teu.
Não matemos os amantes injustos e pouco gentis;
Pensa apenas em mim e, em mim, neste Desejo teu.

SONETO 136


Se a tua alma te impede que eu me aproxime,
Jura à tua cega alma que sou teu Will,
E o desejo, tua alma sabe, aqui cabe;
Pois meu amor preenche a minha doçura.
Will preencherá o tesouro do teu amor,
Sim, encherá até a boca, e apenas com o meu desejo.
Naquilo que aceitamos, logo comprovamos
Somente o que preferimos.
Assim, entre vários, passo despercebido,
Embora eu seja único para ti;
Pois nada me detém, então, não me impeças
Que eu seja doce e gentil para ti.
Ama apenas meu nome, e o amor que ele contém,
E assim me amas, pois meu nome é Will.

SONETO 137


Tu, cego e tolo Amor, que fazes aos meus olhos,
Que não veem o que está à frente deles?
Eles conhecem a Beleza, e sabem onde ela jaz,
Embora o Bem nos custe tão caro.
Se os olhos, corrompidos pela parcialidade,
Ancorassem na baía onde todos trafegam,
Por que da falsidade de teus olhos forjaste ganchos,
Para prender a eles o que julga o meu coração?
Por que deve meu coração prever este ardil,
Sabendo ser o lugar-comum deste grande mundo?
Ou meus olhos, ao verem, digam, “não é verdade”,
Para emprestá-la a uma face tão vil?
No que era certo, erraram meus olhos e meu coração,
E agora a esta falsa praga se entregam.

SONETO 138


Quando minha amada jura ser verdadeira,
Eu a creio, embora saiba que ela mente;
E pense ser eu um jovem inconsequente,
Desconhecendo as falsas nuances deste mundo.
Assim, em vão, pensando que ela me julgue novo,
Sabendo que os meus melhores dias já se foram,
Simplesmente acredito em sua torpe língua;
Em ambos os lados, a mera verdade é suprimida,
Mas, quando ela não diz ser injusta?
E quando eu não digo que sou velho?
Ah, o maior dom do Amor é parecer sério,
E, no Amor, a idade não quer ser dita:
Assim, minto com ela e ela comigo
E, mentindo, em nossos erros, nos deleitamos.

SONETO 139


Ó, não me chames para justificar os erros
Que tua grosseria derrama sobre o meu coração;
Não me firas com o teu olhar, mas com a tua língua;
Usa a força contra mim, e não me mates por capricho;
Dize que amas a outro, mas sob a minha vista,
Querida, evita olhar para o outro lado;
Para que ferir-me com destreza quando usas
Mais força do que eu para me defender?
Deixa-me desculpar-te: “Ah, meu amor sabe bem
Que sua beleza tem sido minha inimiga,
E, portanto, afasta de mim meus inimigos,
Para que, de longe, lancem as suas injúrias”.
Porém, não faças isso; por estar quase morto,
Mata-me agora com o teu olhar, e livra-me da minha dor.

SONETO 140


Sê tão sábia quanto és cruel; não pressiones
Minha contida paciência com muito desdém,
A menos que o pesar me dê palavras, e estas
Expressem como me sinto diante da minha dor.
Se eu pudesse te ensinar a ter mais juízo, melhor seria,
Embora não a amar, mesmo que o amor me diga isso;
Os enfermos, quando a morte se aproxima,
Só esperam que os médicos os salvem.
Se eu me desesperasse, enlouqueceria,
E, em minha loucura, posso falar mal de ti.
Este mundo tornou-se tão doente e distorcido,
Que loucos ouvidos aceitam loucas calúnias.
Que eu não me deixe levar, nem sejas difamada;
Mantém os olhos firmes, mesmo orgulhoso o coração.

SONETO 141


Por crer, não te amo com os meus olhos,
Pois eles em ti veem mil defeitos;
Mas é o meu coração que ama aquilo que desprezam,
Que, apesar de ver, se comprazem com o que sentem.
Nem se alegram meus ouvidos ao som de tua língua;
Nem sentimentos doces nascem de teu toque,
Nem sabor ou perfume são bem-vindos
A qualquer festim sensual a que me convides:
Mas meus cinco sentidos não podem
Dissuadir um coração tolo de servir-te
Que deixas imperturbado como um homem,
Escravo e vassalo de teu coração altivo:
Somente em desgraças conto os meus ganhos,
Pois aquela que me faz pecar também me faz sofrer.

SONETO 142


O amor é meu pecado e o ódio, tua doce virtude,
Ódio por meu pecado, de um amor pecaminoso:
Ah, se comparares o teu estado ao meu,
E não achares seus méritos reprováveis;
Ou, se forem, não por teus lábios,
Que profanaram seus rubros ornamentos,
E selaram falsas juras de amor tanto quanto eu;
Roubando outros leitos de seu uso.
Seja dito que te amo, como amas aqueles
Que atraem teus olhos como os meus te importunam:
Planta, em teu coração, a piedade, que, quando crescer,
Mereça a tua compaixão ser compadecida.
Se procuras ter aquilo que ocultas,
Pelo teu exemplo te seja negado!

SONETO 144


Tenho dois amores que me consolam e desesperam,
Que, como dois espíritos, me inflamam;
O anjo bom é um homem belo e justo,
O mau, uma mulher mal-intencionada.
Para arrastar-me ao inferno, meu lado feminino
Tenta meu anjo bom e companheiro,
Querendo de santo transformá-lo em demo,
Seduzindo sua pureza com falso orgulho.
E, se meu anjo se tornar vil,
Eu suspeito, embora não consinta em dizê-lo;
Mas, sendo ambos meus, ambos meus amigos,
Creio que um anjo seja o inferno do outro.
Mesmo que eu nunca saiba e viva em dúvida,
Até que o meu anjo mau se livre do meu anjo bom.